segunda-feira, 6 de abril de 2009

Memorial


Falar da minha formação profissional é mexer com muitos dos sentimentos guardados neste músculo chamado coração.
Até o momento de uma amiga, a minha eterna amiga irmã Mazenilde me convidar – em 2001 – a fazer vestibular por brincadeira, eu nem imaginava ser professora de Língua Portuguesa. Então, por brincadeira, participei do vestibular e passei. No entanto, este ponto de minha vida pode ser retomado mais adiante já que, para esse momento, o ideal é seguir uma linha cronológica.
Eu comecei a ter acesso à educação formal com aproximadamente quatro anos e meio quando fiquei na Casa do Candango, uma creche pública bem conhecida em Brasília. No momento em que eu não pude mais ficar lá, passei a morar com a minha mãe no serviço dela. Ela era empregada doméstica.
O seu patrão, o saudoso João Antonio da Silva Coelho, era advogado. Ele sempre dizia: “erre no arroz mas não erre no português.” Foi ele quem me ensinou e me ajudou a interiorizar a variedade-padrão. Foi ele quem me deu o alicerce para começar a desvendar os mistérios deste vernáculo tão lindo e complexo.
Eu sempre estudei em escola pública. Vale dizer que eu fiz a 5ª série duas vezes. A primeira vez eu cursei no Santo Antonio do Descoberto – Goiás. Nos mudamos pra lá porque minha mãe não mais conseguia arcar com ao aluguel e as despesas.
Para chegar à escola, eu precisava andar de quinze a vinte minutos. Então, passei a não ir. Qualquer desculpa era válida para faltar às aulas. Foi um ano de fracasso total em minha vida. Fracasso?! Não. Sucesso. Sucesso porque a partir desse vacilo enorme, eu adquiri um conhecimento singular. Na situação em que eu me encontrava, descobri que o conhecimento era o único caminho para eu vencer na vida. Com esse óbice, passei a valorizar a escola.
Até a 8ª série, eu acreditava que iria me enveredar pelos caminhos das ciências exatas. Talvez porque eu mantivesse um amor platônico pelo meu professor de Matemática.
Terminando o ensino fundamental, as águas me levariam até o Setor Leste, colégio no qual eu iria cursar o meu 2º grau. Até que uma amiga que se chamava Narjara me propôs participar do teste de seleção para ingressar na Escola Normal. Mesmo insegura, participei do processo seletivo e fui aprovada.
Em 1997 eu estava cursando o 1º ano do magistério. Saboreei o doce gosto de estar no 2º grau. Paralelamente, conheci o amargo sabor de não dominar a Língua Portuguesa, pelo menos aos olhos da professora desta disciplina do referido ano. Para esta profissional, o domínio das normas ditadas pela gramática prescritiva se sobrepunha a qualquer saber. O aluno que lhe entregava uma boa produção escrita, fosse ela em prosa ou em verso, era como um elogio à sua pessoa. Do contrário, não era digno de sua atenção. Essa era a minha visão. É oportuno dizer que “boas produções” eram o mesmo que escrever certo. A idéia poderia ser boa, mas se viesse regado de falhas ortográficas, era considerada também um erro. As minhas redações eram sempre regulares, satisfatórias, precisavam ser melhoradas. Então eu me perguntava por onde eu deveria começar para melhorá-las. Eu não sabia quais eram meus “pecados”, por assim dizer. Foi a partir desse momento que eu passei a perder o estímulo pelos estudos, aliados a outros aspectos de cunho social e sentimental.
Passei, então, a dormir em todas as aulas. Quase não me concentrava. A aula que eu passei a gostar mais foi a de Inglês. Mesmo assim, eu ainda não era a aluna que gostaria de ser.
No ano seguinte, comecei no mesmo ritmo até conhecer a professora Madalena, de Metodologia. Influenciada por ela, passei a ter mais ânimo.
O professor de Língua Portuguesa do 2º ano era aquele que se apresentava em moldes do educador de antigamente. Lembro – me que ele pediu um exemplo de substantivo próprio. Eu disse: o meu nome professor, “Andreia”. Ele grafou o meu nome com acento. Eu retruquei indagando que o meu nome não tinha acento. Este, por sua vez, replicou dizendo que, de acordo com a gramática normativa, aquela palavra era acentuada e que o meu nome é que tinha sido registrado errado. Portanto o nome Andréia, no exemplo, ficaria da forma ‘correta’. Como discordar do professor, se eu não tinha embasamento suficiente pra isso? Se a história fosse hoje, talvez não conseguiria argumentar oralmente, com proficiência. No entanto, ele com certeza, não ficaria sem uma boa resposta, ainda que na linguagem escrita.
Mais uma vez, me senti estranha. Era como se eu não participasse daquele mundo. Mas os ensinamentos extras da professora Madalena me fizeram enfrentar com confiança momentos críticos como esse.
As coisas melhoraram quando a professora Cláudia de Metodologia da Língua Portuguesa voltou de licença. Ela começou a trabalhar a língua nos moldes da Lingüística, tão mais abrangente que extrapolava os meros ensinos da velha gramática. Sem saber, aquela educadora começava a me mostrar que o “igapó” era pequeno demais pra eu julgar a imensidão da beleza que era o rio da Língua Portuguesa. Foi começando a navegar por essas lindas águas estranhas e um tanto quanto turbulentas, que passei a desenvolver o anseio por mudar a minha realidade. Resgatei em mim a vontade de fazer diferente.
O 3º ano foi o melhor de todos. A um passo da formatura, a outra Andreia já estava sendo gerada. Eu começava a sair do papel de coitadinha para assumir o papel de pesquisadora.
Eu era desprovida de informações. Ingênua. As palavras das pessoas letradas eram leis para mim. Então, passei a descobrir que ter um pouco de malícia, não fazia mal. Ao contrário. Recordo-me que em 1997, no ano em que entrei no Magistério, estava sendo implantado o programa do Programa de Avaliação Seriada, o PAS. Perguntei a uma professora o que ela achava de me inscrever neste programa. Ela disse que não iria valer a pena, que o conhecimento que adquiríamos ali não era voltado para vestibulares. Sim, o que não queria dizer que éramos incapazes de participar. Era a visão de um professor, uma pessoa estudada. Sabia o que estava falando. Pelo menos eu pensava assim. E pensando assim, não participei do programa. Respaldada nas palavras daquela detentora do saber, eu acreditei que estava fazendo uma grande coisa. Ledo engano.
Segundo grau concluído, passei a batalhar por serviço. Nessas idas e vindas, comecei a trabalhar em uma escola particular, no Recanto das Emas. Foi lá que a minha vida tomaria, definitivamente, o rumo para o campo do conhecimento da língua materna.
Nesta escola, conheci a professora Mazenilde, aquela do início de minhas memórias. Como já havia mencionado, nem me passava pela cabeça prestar vestibular para a faculdade de Letras, muito menos em uma instituição particular. Eu já havia prestado vestibular para a área de Matemática, na UNB, e já pensava em como me preparar para tentar Relações Internacionais, que era o que eu mais queria. Nesta época, eu carregava o peso da inferioridade em minhas costas. De um lado que jamais cursaria uma boa faculdade particular já que era filha de uma empregada doméstica e o que eu poderia esperar da vida era exercer a mesma profissão dela. Vale abrir aqui um parêntese e dizer que tal relato é exímio de preconceito. Minha mãe exerceu sua profissão com esmero e dedicação como qualquer outro profissional. Do outro lado, compartilhava a idéia de que quem se forma em uma instituição particular, simplesmente compra o diploma. Mesmo assim, aceitei o desafio e prestei vestibular para a FTB que, na época, era uma das mais baratas, mas que estava com algum destaque na Educação.
Passei em primeira chamada para o noturno. Eu chorei tanto. Minha mãe não se continha de alegria. Na época, eu ganhava um salário mínimo – que correspondia a cento e oitenta reais. A mensalidade era trezentos e vinte reais. Eu dava o meu salário e minha mãe completava. Aos trancos e barrancos financeiros eu finalizei o primeiro semestre com um saldo positivo: Comecei a me sentir uma pessoa capaz. Alguns de meus mestres começaram, então, a apontar minhas falhas na escrita recomendando ajustes pertinentes e que me fizeram entender ainda mais, a dinâmica da linguagem escrita.
Com esse suporte, passei a detectar minhas falhas e em cima delas comecei a trabalhar. Foi nesse exato momento que descobri que escrever não era dom e sim treino.
Em 2004 concluí a graduação e no segundo semestre do ano seguinte iniciei a pós – graduação em Lingüística e Língua Portuguesa. Foi nesse curso que constatei que eu era uma boa usuária do meu vernáculo. Que eu sabia, melhor dizendo, sei utilizar bem as diferentes modalidades da Língua Portuguesa. Afinal, eram diferentes mestres e doutores na área atestando isso. E por que não acreditar?
A partir daí me senti segura. Posso, então dizer que esse foi o marco significativo em minha trajetória profissional. Foi quando passei a me sentir segura para debater a respeito do que significa realmente ler, escrever e falar ‘Português, ou Brasileiro?’
Ser professor de Língua Portuguesa não é meramente ser transmissor dos conhecimentos oriundos da Gramática. Ser professor de Língua Portuguesa requer que naveguemos pelo imenso rio repleto de surpresas e afluentes. Precisa explorá – lo sem medo. Para tanto, é necessário nos munirmos com os equipamentos certos para que a exploração seja eficaz e proveitosa. O professor pode até começar por usar vestimentas da humildade e da solidariedade.
O primeiro o livrará de se sentir autoconfiante em demasia, oportunizando a outros, conselhos a respeito da exploração em questão. O segundo o ajudará a dar a mão aos inexperientes e novatos nessa empreitada, evitando assim, que seja o causador de naufrágios – muitas vezes fatais – e se tornando um marinheiro ou mesmo chalaneiro lendário. Acredito eu que falta pouco pra chegar lá.


Texto escrito em 03/2007

4 comentários:

profangela disse...

Profe Déia..parabéns pelo memorial...Amei e me emocionei.
Também tenho "novis" ...tchantchan...Dei minha priemira aula de Gestar hoje(30/04)
adivinhaaaaaaaaaaaaaaaaa
Amei e as profes adorarammmmmm
levei vários textos ...idéias..videos e tals
Fiz a dinâmica dos nozinhos, elas participaram e foi dez..mil...
Brigada por ter me dado suporte e segurança.
Te conto mais no meu relato.Bjus no coração e bom findiiiii.
Bjus Profangela Joaçaba SC.

Anônimo disse...

Olá, prof. Andreia, finalmente consegui ler o seu memorial. Li e, diga-se de passagem, ammeeeiiii. Que história, hein mulher?! Deve ter sido todo ese caminho percorrido que hj vc se apresenta como essa mulher de fibra e coragem.Parabéns pela luta e pelo sucesso.Bjs no coração e seja feliz SEMPRE. Aparecida Calado - Pombal - PB.

ap.calado disse...

Ah, Andreia, pela 1ª vez posto um comentário no blog(segredo...)e acabei me apresentei como anônimo,mas quero me retratar(kkkkkk, que paraibanazinha enrolada) Bjs.

Valdenia disse...

Prof Deia acabei de descobrir esse blog e, que fantástico o seu memorial.parabéns. Valdenia- Colonia do Gurguéia - Piaui